Apesar de estar retratada em uma obra de ficção, a história de Laura (Bella Piero) em “O Outro Lado do Paraíso”, infelizmente, é bastante real: vítima de pedofilia pelo padrasto, a personagem passou a infância sendo violentada e agora, adulta, convive com as consequências psicológicas do trauma.
Na obra de Walcyr Carrasco, a personagem recebe ajuda da protagonista, que esquematiza a condenação do padrasto e, para isso, tenta fazer com que Laura se lembre da violência que sofreu.
E foi justamente esse o ponto polêmico: a novela foi duramente criticada por profissionais de diversas áreas ao fazer uma escolha de roteiro “sem compromisso com a realidade”, nas palavras da própria emissora.
Merchan em “O Outro Lado do Paraíso”
Em comunicado oficial, o Conselho Federal de Psicologia afirmou que, neste caso, a novela prestou um desserviço à sociedade ao tratar o problema com simplismo e interesses mercadológicos. Isso por que a personagem acaba tendo seu trauma “resolvido” com sessões de coaching e hipnose, um método sem qualquer comprovação científica e altamente desaconselhado para este tipo de situação.
O próprio diretor da novela, Mauro Mendonça Filho, falou sobre o assunto em sua conta no Twitter e admitiu que a novela poderia ter sugerido um psicólogo na trama, mas defende que a causa principal da história de Laura é incentivar à denúncia.
A opinião do Conselho, inclusive, foi endossada pelo próprio Instituto Brasileiro de Coaching (IBC), que ressaltou a importância do tratamento psicológico profissional em casos como o de Laura. “Um coach não está habilitado para aplicar técnicas terapêuticas ou lidar com transtornos, distúrbios e traumas”, ressaltou o Instituto.
Vale ressaltar que o episódio polêmico teve ação de merchandising do próprio IBC, que apareceu creditado ao final do episódio, como exposto em matéria da colunista Cristina Padiglione. O fato de o roteiro ter sido associado a uma propaganda comercial intensifica ainda mais o debate: a novela precisa assumir algum compromisso social?
Responsabilidade social da novela
Para o Conselho Federal de Psicologia, ainda que seja óbvio tratar-se de uma obra de ficção, a mistura das barreiras entre fantasia e realidade são pontos marcantes das novelas.
“Nós sabemos que as novelas pautam opiniões, que uma grande parte do público realmente considera o que está sendo exposto ali e que a falta de sensibilidade para lidar com assuntos mais delicados podem contribuir para que eles se tornem ainda mais tabu do que já são”, explicou a psicoterapeuta e mestre em Psicologia Analu Ianik Costa, em entrevista ao VIX.
Em “O Outro Lado”, uma das sugestões na hipnose é que Laura faça contato com o padrasto para perdoá-lo – o que é um caminho bem arriscado. “Não há como garantir que perdoar o agressor vá fazer a pessoa se libertar, pelo contrário, isso pode ser pior. Por isso, essa sugestão da novela é perigosa e a preocupação é que as pessoas acreditem no que viram na novela”, comenta Analu.
Além disso, a construção da personagem, de maneira geral, também pode transmitir uma mensagem errada. Na novela, Laura é uma garota apática, com pouco traquejo social e uma aparência “mortificada”. Na vida real, não é bem assim. “A violência sexual é muito mais comum do que imaginamos, e essa nem é a cara de quem foi vítima na maioria das vezes. É preciso sensibilidade para expor um problema tão grave, ainda mais em um veículo que, sim, contribui para a visão de mundo das pessoas”, ressalta a psicóloga.
Coaching
Tanto a psicóloga consultada pelo VIX, quanto o Conselho Federal de Psicologia ressaltaram que não há comprovação científica alguma da eficácia desse método para esse tipo de tratamento, ainda mais conduzido por alguém que não é profissional da área. “O abuso sexual deixa marcas profundas, que não têm cura, mas que a vítima pode aprender a conviver, com um tratamento terapêutico profissional e especializado. Meios alternativos, ainda mais com esse viés místico, não são recomendados”, afirma Analu.
Novela como obra de ficção sem compromisso com realidade
Por outro lado, sabemos que, como produto comercial, o objetivo da novela é entreter e que o autor é livre para criar sua arte sem se prender à realidade.
“A novela dialoga com a realidade, com a ciência, mas não precisa ser fiel a elas. O autor não precisa dizer que este ou aquele é o melhor método, mas contar uma história de fantasia, adaptada para a linguagem televisiva”, argumenta Claudino Mayer, Doutor em Ciências da Comunicação (USP) e professor da Faculdade Progresso.
Com o objetivo de causar comoção e apelo emocional à história da personagem, Walcyr Carrasco optou por um caminho fantasioso. “Há um objetivo, uma linguagem aí. A repulsa que a história dela causa é positiva, levanta o debate, faz com que o público se sensibilize com o sofrimento da personagem”, pontua.
“O que a novela ‘O Outro Lado do Paraíso’ quer mostrar com o desenvolvimento da trama da personagem Laura é o processo pelo qual passa uma pessoa que precisa de ajuda, recorrendo a diferentes e variadas formas de apoio e terapias, das mais às menos ortodoxas”, afirma a Comunicação da Globo via comunicado oficial enviado ao VIX.
Por outro lado, a emissora afirma que, embora a criação artística não tenha compromisso com a realidade, a programação tem responsabilidade social. “A Globo reconhece a importância de todos os seus programas para discussões e reflexões sobre assuntos de interesse da sociedade e está atenta à responsabilidade que lhe é atribuída sobre todos os temas abordados. Está prevista a exibição, ao final de alguns capítulos, de cartela de divulgação do Ligue 100, número oficial para denúncias de violação de direitos humanos”, diz o comunicado.
No Brasil, 70% das vítimas de estupro e abuso sexual são crianças e adolescentes e a esmagadora maioria do sexo feminino. Portanto, a história de Laura na ficção, apesar de chocante, tem, sim, um pé na realidade. Trata-se de uma questão sensível e muito séria em um país ainda extremamente violento com mulheres. “A novela pode até ser só uma diversão, mas tem um alcance que vai muito além”, conclui Analu.
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