Mesmo não sendo uma novidade nas telonas, ainda há o que se discutir em relação ao desenho da Pixar “Valente”, de 2012. Existe no filme muita temática de conflito geracional, empoderamento feminino e metáforas da puberdade que fizeram muito barulho em “Frozen”, mas já haviam sido antecipadas pela Disney na história da princesa Merida.
Claro que um filme não anula o outro e suas histórias enriquecem muito o atual momento de representatividade no cinema e mudanças de alguns paradigmas, somando forças e apresentando novos tópicos para diversas discussões. Escrito e co-dirigido por Brenda Chapman, a história da princesa que quer romper as tradições de seu reino tem muito da própria diretora.
Em entrevistas na época do lançamento, Chapman declarou que escreveu “Valente” tendo como base sua vivência pessoal. “É um roteiro que veio do meu coração inspirada na minha relação com minha filha”. Talvez por isso o filme seja fidedigno ao que a doutora em educação e estudos culturais Patrícia Ignacio chamou de “enfrentamento do que era estabelecido”.
“Valente” é metáfora da puberdade
“Valente” conta a história da princesa Merida, que vive em um reino muito jovem (seus pais são os primeiros monarcas do lugar), mas já cheio de tradições.
A figura de sua mãe, a rainha Elinor, é um contraponto em relação à geração e a transmissão de tradições: ela quer que sua filha se case em plena adolescência, mas Merida tem desejos e vontades próprios que divergem dos de sua mãe.
O desenho se passa durante uma fase da vida que Freud chamou de “desligamento da autoridade dos pais”.
Segundo uma análise psicológica do filme, feita pela psicóloga Jéssica Molina Quessada e pela mestra em psicologia e sociedade Marien Abou Chahine, os conflitos entre pais e adolescentes acontecem porque a imagem que os jovens dão aos mais velhos e o tom que se dirigem a eles “perturbam o que a infância havia organizado do laço familiar”.
Impossível falar com a mãe urso
Merida e Elinor não conseguem manter um diálogo para resolverem seu conflito geracional e a menina acaba utilizando recursos mágicos que prometem “mudar sua mãe”. Ao fazer isso, ela altera não apenas o jeito de pensar da rainha, mas também seu corpo.
Merida literalmente transforma a mãe em uma ursa, que até entende o que os humanos falam, mas não consegue mais conversar com uma pessoa. Embora isso possa ser entendido como uma metáfora aos problemas de diálogos entre adolescentes e mães, é também um excesso de penalidade para à protagonista, segundo a visão da especialista ouvida pelo VIX.
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Sofrimento por não seguir a norma
“O filme faz um movimento interessante em relação a problematizar o enfrentamento. Contudo, a forma como ele apresenta a questão de não seguir a norma é bastante sofrida, e isso tem que ser discutido com a criança que assiste ao desenho”, defende Patrícia Ignacio.
“A superação só vem depois do arrependimento”. Essa visão talvez ajude a construir a moral da história de Merida: “o destino está dentro de nós; deve-se apenas ser valente o suficiente para vê-lo”.
Do ponto de vista da psicologia, “o filme nos mostra o quanto há um entrelaçamento entre o que nos é transmitido transgeracionalmente e nosso desejo de transformação”, segundo o artigo de Jéssica Molina Quessada e Marien Abou Chahine.
Menina se tornando mulher e sua própria heroína
A doutora em educação e estudos culturais enxerga que “Valente” tenha metáfora às escolhas não só adolescentes, mas também da mulher. O filme mostra um torneio em que o primogênito de cada família disputa a mão da princesa numa prova que ela escolhe. Por ser uma exímia arqueira, ela opta pelo arco e flecha e decide disputar sua própria mão, já que é a primogênita de sua família.
“Ao longo da história, a princesa vai incorporando um conjunto de características consideras do mundo masculino”, analisou Patricia Ignacio. Segundo essa visão, Merida se coloca independente do fator gênero, pois é uma mulher que pode enfrentar outros homens em igualdade – na verdade, uma baita superioridade no arco e flecha. “Ela não se despe da identidade de mulher, mas se empodera daquilo que acha essencial e que gosta”.
Diretora afastada do filme
Abordar temas progressistas não torna a Disney/Pixar tão evoluídas assim, pelo menos no que diz respeito ao trato com mulheres profissionais. Basta recordar que a diretora e roteirista de “Valente”, Brenda Chapman, acabou sendo afastada da produção pouco antes da estreia e tem seu nome nos créditos dividido com outro diretor, Mark Andrews. Ambos receberam a estatueta do Oscar pelo premio de melhor animação pelo desenho.
Em um artigo que Chapman escreveu em 2012 para o New York Times, ela disse que a história surgiu de “lugar muito pessoal, como mãe e mulher”. “Ter isso retirado e dado a outra pessoa, e ainda por cima um homem, foi angustiante em vários níveis”, declarou. No mesmo texto ela revelou que sua visão prevaleceu no resultado final. Uma pena que o processo não tenha sido nada fácil.
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