História de Matheus Nachtergaele ficou marcada pela ausência precoce da mãe, que o levou a ressignificar a perda
Matheus Nachtergaele perdeu a mãe aos três meses de vida e precisou ressignificar a dor ao longo de sua trajetória. Porém, o ator descobriu a verdade somente aos 16 anos, quando o pai contou que Maria Cecília tinha tirado a própria vida. O artista, portanto, teve acesso ao diário de bebê feito por ela, além de suas poesias, produzindo um espetáculo para homenageá-la que o aproximou ainda mais da arte.
Conheça a história!
Matheus Nachtergaele perdeu a mãe aos três meses de vida
Maria Cecília era poetisa e musicista. A mãe de Matheus cometeu suicídio, aos 22 anos, pouco tempo após o nascimento do recém-nascido, em 21 de abril de 1968, data que ficou marcada para sempre na história da família.
“No dia 21 de abril de 1968, a minha mãe, a poetiza Maria Cecília Nachtergaele, a Cecilinha, a Pingo de Gente, se matou. Era o dia do meu batizado e ela se foi. Deixou atrás de si um bebê que chorava no berço, eu. Um homem imensamente triste, meu pai, e um vestido preto, debruçado sobre uma cadeira de palhinha, que ela havia separado para a cerimônia”, relembrou o ator, em entrevista ao Gshow, em 2020.
Matheus descobriu a verdade apenas aos 16 anos, através do pai, Jean Pierre Nachtergaele, que optou por contar o que realmente aconteceu. A revelação o transformou enquanto artista e levou o ator a produzir um espetáculo “Processo de Conscerto do Desejo”, em 2015, no qual recita os poemas da mãe de forma sensível e poética.

“Eu demorei muitos anos para montar no palco os poemas da minha mãe. Há muito tempo eu pensava em como fazer isso e cheguei até a mostrar os 30 poemas que ela deixou, todos passados à limpo em uma máquina Olivetti, e guardados em uma pastinha de elástico azul, pra algumas atrizes pensando em dirigi-las”.
“Há cinco anos, o Festival de Teatro de Ouro Preto e Mariana me convidou pra fazer alguma coisa que eu tivesse na manga. Eu não tinha nada… Respondi que podia ler os poemas da minha mãe. Eles toparam e a aventura começou”, entregou também o ator.
O espetáculo ajudou Matheus, sobretudo, a lidar e processar a dor da perda. “Demorei muito porque o suicídio é um tabu. Eu passei uma boa parte da minha vida enlutado pela perda precoce da mamãe e, principalmente. perturbado e modificado desde que eu soube que ela se matou”.
“Eu tinha 16 anos quando o meu pai me levou pra casa de praia em Maranduba, litoral paulista, para me contar em um encontro inusitado, só eu e ele, o que tinha acontecido. Ele tomou um grande porre, tomou coragem e contou com detalhes a noite do suicídio da mamãe”.
“Eu fiquei muito espantado, muito triste, muito chocado e muito aliviado por saber, finalmente, o que tinha acontecido com ela. Nessa mesma noite ele me entregou a pasta azul com os poemas. Eu fui pra beira da praia, passei a noite ali, amanheci ali, lendo os poemas, procurando pela primeira vez ouvir as palavras da minha mãe e acho que naquele momento eu me tornei o artista que eu sou”.
Matheus Nachtergaele processou a perda da mãe através da arte
O momento da revelação fez com que Matheus se transformasse como ator. “Eu convivi com isso tudo de uma maneira opaca, obscura, tristonha… Obviamente não se conta para uma criança a verdade sobre o suicídio, e eu fui criado, então, por meu pai e a sua mulher, minha madrasta, a Carmem, meus três irmãos, filhos dela com papai, como se nada tivesse acontecido. A partir dos 16 anos, quando eu soube da verdade, tudo mudou”.

“Eu entendi que eu era fruto de uma grande tragédia familiar. Compreendi melhor o desespero, a bebedeira do meu pai, e a constante sensação de que a vida me escondia alguma coisa”, avaliou o ator, que se dedicou por completo ao espetáculo, apresentado em várias regiões do Brasil.
Na peça, Matheus se dirigiu, com a ajuda do iluminador, Orlando Shaider. “Eu crio a partitura musical, escolho as músicas, junto com meus músicos, Luã Belik e Rafael Dias Belo, um ao violão, outro ao violino. E produzo o espetáculo junto com Miriam Juvino. Assino a cenografia, que é simples, com alguns elementos que se ligam às notícias que eu tive da minha mãe e que estão nos poemas também”.
“Uma cadeira de palhinha, um grande espelho de acrílico que vira também instrumento percussivo em certos momentos, um velho leque de abanar, e o figurino é um vestido preto que reproduz um pouco o tipo de roupa que minha mãe gostava de usar”.
Matheus Nachtergaele incorporou poemas da mãe em sua vida
Matheus, portanto, se transformou na mãe, em cena, para recitar os poemas. “Sou ao mesmo tempo o filho e o arauto da minha mãe. Utilizo meu material de ator, meu corpo e minha criatividade, minha coragem, para dar voz para aquela que se calou. E finalmente realizo um pequeno milagre que, talvez, só o teatro possa realizar”.
“Deixar minha mãe viva, não só através do meu corpo, pois eu sou sua descendência, mas tendo sua obra celebrada, há cinco anos, de maneira muito poética e dançante”, avaliou ainda. De acordo com o ator, a peça vai acompanhá-lo durante toda a vida, como extensão de sua história.
“Faz parte do meu processo como ser humano, da superação do meu luto, e é por isso que o título é tão psicanalítico, Processo de Conscerto do Desejo. O desejo é aquilo que nos move, tudo a que nos leva a querer viver, minha mãe decidiu morrer, por isso eu faço um ‘conscerto’, um conserto da minha relação com esse desejo dela, um trabalho em alegrar o que parecia triste, ou pelo menos em tirar do que parecia triste sua melhor beleza”.
Memórias da mãe de Matheus Nachtergaele
Maria Cecília Nachtergaele escreveu um diário de bebê, detalhado, ao qual Matheus também teve acesso, optando por publicá-lo como um livro de memórias póstumas. Intitulada “A Mariposa”, a obra foi lançada oficialmente em 2016.
“Quis dar os poemas às pessoas da mesma maneira que os recebi. Minha mãe havia organizado numa pasta com as folhas soltas. As páginas delicadas remetem ao formato amolecido de papéis que ficaram mais de 10 anos guardados numa gaveta. São como uma joia”, afirmou, em entrevista ao jornal O Globo, na época.
“Prometi a mim mesmo, desde pequeno, que publicaria a obra. Não sei se era a intenção dela, mas acho que sim. Em alguma instância ela acreditava que seria bonito. Se não fosse por mim, a obra estaria perdida”, acrescentou. Em outra entrevista que viralizou, para o “Lady Night”, apresentado por Tata Werneck, o ator deu mais detalhes do contato com as memórias.
“Uma vez meu psiquiatra falou ‘sabe qual o problema? Tua mãe te olhou nos olhos. Olha que lindo. Você tem jeito de bebê que olhou nos olhos da mãe’. Nem toda mãe olha profundamente nos olhos do filho, mas as pessoas que são olhadas profundamente pela mãe tem uma marca, segundo ele, de sentimento e de amor por essa pessoa”.
“Como essa pessoa foi perdida, ficou em mim uma mágoa. Acho que em algum momento aquilo que eu amava não estava mais diante dos meus olhos. Eu acho que ser filho da Cecília, poetisa e que partiu tão cedo, da maneira como foi, é triste, mas também é muito construtor do que eu sou”, avaliou, em seguida.
“A minha mãe escreveu um diário de bebê, bem obsessivo, aqueles diários que, no início assim, era de hora em hora. Matheus acordou chorando, mamou, dormiu três horas, acordou, fez cocô. Era muito minucioso. Ela só ficou comigo durante três meses. Com três meses, é quando o bebê começa a ver o mundo fora dessa relação. Ele e a mãe são uma coisa só. Com três meses, mais ou menos, parece que você faz a passagem e eu acho que ela esperou eu sacar que tinham outras coisas para partir”.
“A última coisa que ela escreveu no diário, antes de morrer, foi ‘hoje pela primeira vez, aí ela já não me chamava de Matheus, o bebê brincou com o sininho do berço’. Eu acho que isso quer dizer assim, ‘ele se interessou por alguma outra coisa que não era eu’. Eu vou responder isso com uma poesia dela mesma: ‘Então mãe, afinal, eu agradeço a você porque, me fazendo sofrer, fez nascer em mim a poesia que, a ti, ofereço com timidez'”.